Sou pesquisador e sociólogo, mas, acima de tudo, sou um religioso. Ao longo da minha trajetória, frequentemente me deparo com discursos que defendem a evolução espiritual como uma verdade irrefutável. No entanto, não compartilho dessa visão e decidi escrever este artigo para apresentar minha abordagem e perspectiva sobre a evolução espiritual. Considero este um tema complexo demais para ser tratado de forma leviana. É importante entender que essa ideia surgiu da fusão de diversos pensamentos prévios, muitos deles enraizados em fundamentos sólidos de outras áreas do conhecimento. Convido você a ler este texto na íntegra para entender o meu posicionamento a respeito.
O karma do “karma”, do conceito até a interpretação cultural moderna
O conceito de Karma é complexo e multifacetado, com raízes na cultura e filosofia hindu. Originário do sânscrito, Karma significa “ação” e refere-se às consequências dessas ações ao longo das vidas. Nos textos sagrados hindus, como os Vedas, Karma é visto como uma força que guia o ciclo de nascimento e renascimento, influenciando o destino individual.
Para ilustrar a complexidade do conceito, podemos fazer uma analogia com o idioma alemão. O alemão é conhecido por sua precisão e falta de ambiguidade. Cada palavra tem um significado claro e específico, sem margem para interpretações dúbias. Isso faz com que o alemão seja utilizado como língua oficial em atas de reuniões da ONU, garantindo que todos os participantes entendam exatamente o que foi dito.
Da mesma forma, no sânscrito, a palavra Karma é uma estrutura gramatical precisa. Assim como “sílaba” em português refere-se a uma unidade de som em uma palavra, Karma no sânscrito refere-se a unidades de ação dentro de uma frase. Isso demonstra como o conceito original de Karma é diferente da interpretação popular ocidental, que muitas vezes simplifica ou deturpa seu significado. A interpretação ocidental frequentemente simplifica essa ideia, reduzindo Karma a uma noção de “causa e efeito” sem considerar seu contexto espiritual e cultural que fazem parte do idioma.
Na cultura de um hindu, Karma não é apenas um mecanismo de punição ou recompensa, mas sim uma estrutura idiomática que norteia a sociedade. Ele está intrinsecamente ligado ao dharma (dever) e moksha (libertação), formando um sistema ético que orienta a vida dos indivíduos em uma escala macro.
O senso comum ocidental sobre Karma frequentemente se afasta dessa origem linguística e cultural. Para os hindus, inseridos em um sistema de castas e tradições milenares, Karma é parte integrante da vida cotidiana. É uma estrutura fundamental que orienta comportamentos e decisões.
Ainda fazendo o paralelo ao Alemão, que não possui margem para má interpretações do idioma, o sanscrito possui muitas margens para interpretação e deturpações se assim desejarem, portanto, considero errado pegar um conceito sem sua aplicabilidade cultural original e interpreta-lo em uma escala global. Será no mínimo ingênuo…
Quando trago luz para essa distinção, quero evitar equívocos comuns e apontar a profundidade cultural do conceito de Karma. Acredito que possamos reconhecer como certas ideias podem ser reinterpretadas ou mal compreendidas fora de seu contexto original.
Do Darwin ao Darwinismo Social
Quando Charles Darwin desenvolveu a “Teoria da Evolução das Espécies”, ele estava focado na adaptabilidade dos seres vivos. Darwin propôs que espécies evoluem ao longo do tempo através da seleção natural, onde os organismos mais adaptados ao ambiente sobrevivem e se reproduzem. Segundo sua teoria, se dois animais compartilham um ancestral comum, eles existem hoje porque conseguiram se adaptar ao longo dos séculos. Aqueles que não se adaptaram foram extintos.
A evolução biológica de Darwin não especifica quais adaptações são necessariamente benéficas. Por exemplo, um animal pode perder a visão por viver no escuro. Isso é realmente um benefício? O processo é irreversível e pode ter consequências negativas para a espécie e para as subespécie que delas se desenvolverem.
Darwin baseou seus argumentos na biologia e defendeu que suas ideias não deveriam ser aplicadas à sociedade. No entanto, sua teoria desafiava o criacionismo e questionava a visão privilegiada da existência humana, o que gerou muita controvérsia.
O Darwinismo Social, surgido na década de 1870, aplicou erroneamente os princípios da evolução biológica às sociedades humanas. Essa interpretação sugeria que as sociedades mais “fortes” tinham o direito ou até mesmo o dever de dominar as “mais fracas”, justificando práticas coloniais e imperialistas sob o pretexto do progresso social.
O Darwinismo Social usou essas ideias para defender a evolução social como algo positivo, justificando práticas coloniais sob o pretexto de desenvolvimento.
Antes de continuar, deixo um adendo: É crucial distinguir entre a teoria científica de Darwin e as aplicações sociais distorcidas que surgiram posteriormente. Enquanto a evolução biológica não julga moralmente quais adaptações são benéficas, o Darwinismo Social fez julgamentos normativos sobre quais sociedades deveriam prosperar ou desaparecer.
A Evolução Espiritual, as Castas Hindu e a Teosofia.
Helena Blavatsky, uma figura central na Sociedade Teosófica, teve um papel central na elaboração da ideia de Evolução Espiritual que estou questionando. Inspirando-se tanto no Darwinismo Social quanto no sistema de castas do hinduísmo, sua interpretação das raças espirituais foi uma tentativa de integrar conceitos evolutivos com tradições esotéricas e religiosas.
Blavatsky participou ativamente de fóruns internacionais na Europa, onde o Darwinismo Social estava em voga. Embora essa teoria fosse uma deturpação das ideias de Darwin, ela encontrou nela um paralelo com o sistema de castas dos Vedas. Blavatsky propôs que, assim como as castas determinam a posição social na Índia, as “raças espirituais” poderiam determinar o nível evolutivo espiritual dos indivíduos.
Essa visão teosófica sugeria que raças mais “evoluídas” espiritualmente tinham a responsabilidade de guiar e auxiliar aquelas consideradas menos desenvolvidas. Isso se refletia em um discurso civilizatório que estava sendo justificado na dominação cultural (e agora espiritual) sob a alegação de promover o progresso.
Allan Kardec, conhecido por fundar o Espiritismo, também foi influenciado por essas ideias. Como membro da Sociedade Teosófica, ele incorporou elementos do Darwinismo Social em suas teorias espirituais. Kardec acreditava que as raças humanas estavam em diferentes estágios evolutivos, uma visão que refletia as ideias racistas da época e que ele expressou em algumas entrevistas:
“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos.” (Allan Kardec, Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita, abril de 1862.)
No contexto do Iluminismo, havia uma busca por validar ideias espirituais com um verniz científico. Tanto Blavatsky quanto Kardec tentaram apresentar suas doutrinas como algo mais do que meras crenças religiosas, mas sim como sistemas baseados em princípios “científicos”. Isso era particularmente relevante na França, onde a religião tradicional estava sendo questionada e havia um desejo por novas formas de espiritualidade que pudessem coexistir com a ciência.
Portanto, Blavatsky propôs que a evolução espiritual seguia um ciclo similar ao biológico: uma alma nasceria de uma Mônada e passaria por um processo evolutivo através de diferentes formas de vida, incluindo animais e humanos. Essa evolução espiritual era vista como um caminho para alcançar níveis superiores de consciência e eventualmente se tornar um “mestre ascensionado”.
Essa síntese de conceitos — evolução das espécies, Darwinismo Social, karma e castas espirituais — formou a base da teosofia. No entanto, é importante notar que essas ideias eram frequentemente simplificações ou interpretações errôneas dos conceitos originais.
Blavatsky e seus seguidores criaram um sistema que buscava explicar as desigualdades sociais e espirituais através da lente da evolução espiritual. No entanto, essa abordagem não estava isenta de críticas, especialmente devido ao seu uso para justificar hierarquias raciais e culturais.
Para encerrar este artigo, é crucial refletir sobre como conceitos aparentemente distintos, como o karma e a evolução espiritual, foram amalgamados de forma superficial e, muitas vezes, equivocada. A tentativa de associar o karma à Terceira Lei de Newton, por exemplo, demonstra uma compreensão incompleta e uma simplificação excessiva de ideias complexas. A noção de que “toda ação tem uma reação” foi usada para justificar interpretações deturpadas do karma, ignorando seu contexto cultural entre os hindus.
A fusão de conceitos como karma, darwinismo social e evolução espiritual resultou em interpretações que carecem de profundidade. O darwinismo social, em particular, foi uma aplicação errônea das teorias de Darwin ao contexto social, justificando desigualdades e práticas imperialistas sob o pretexto de evolução natural. Essa interpretação não só deturpou a ciência como também perpetuou ideologias racistas e discriminatórias e claro que eu, como sociólogo, vejo o darwinismo social como uma teoria absurdamente falha e prejudicial. Ele foi usado para justificar hierarquias raciais e sociais que não têm base científica ou moral. A tentativa de aplicar a seleção natural às sociedades humanas ignora a complexidade das interações sociais e culturais.
A teosofia de Helena Blavatsky tentou integrar esses conceitos através da ideia de raças espirituais, sugerindo que algumas raças eram mais evoluídas espiritualmente do que outras. Essa visão encontrou ressonância em figuras como Allan Kardec, que também incorporou elementos do darwinismo social em suas doutrinas espirituais.
Em última análise, essas misturas conceituais refletem um desejo de encontrar respostas simples para questões complexas. Elas mostram como ideias podem ser adaptadas para servir a narrativas específicas, muitas vezes à custa da verdade e da justiça social. Como sociólogo, é essencial criticar essas simplificações e trabalhar para um entendimento mais profundo e ético das interações humanas e espirituais e, infelizmente, houve uma associação a Evolução Espiritual, que em minha ótica, é uma “viagem na batatinha” que encontrou eco em discursos científicos do século passado.
Espero que tenha me feito entender, obrigado!
Que Ọ̀rúnmìlà e os irúnmọlẹ̀ te concedam sabedoria e abundantes bênçãos por toda a eternidade!
Até mais! 😊
Referências Bibliográficas:
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Àbọ́rú Àbọ́yẹ́ o!
Texto maravilhoso!
É nítida dentro das obras de Allan Kardec uma forte influência do Darwinismo social, ainda mais que na época que ele as escreve, esta pseudo-ciência estava em alta. Daí podemos fazer um link com o processo de embranquecimento da Umbanda e a absorção das ideias de Kardec na religião umbandista, tentando deixar de lado a raiz Bantu.
Uma ótima reflexão podemos fazer com o texto, obrigado por compartilhar seu pensamento!
Que Ọ̀rúnmìlà e os irúnmọlẹ̀ continuem te concedendo sabedoria e muito Àṣẹ!!!
Ogbó atọ́ àsúre Ìwọ̀rìwòfún, ọ̀rẹ́ mi!
Uma honra ter você por aqui e, com certeza isso tudo convergiu para os dias que conhecemos hoje. Estamos tentando construir algo diferente, mas ainda nos falta MUITO!
Mo dúpẹ́ o! Irúnmọlẹ̀ gbè wàá o!