A voz como ferramenta de Poder

Explorando a Influência da Linguagem na Espiritualidade e Cultura Yorùbá

Antes de abordarmos as complexidades do assunto, proponho uma reflexão sobre a leitura. Você vocaliza enquanto lê? A vocalização é o hábito de pronunciar, mesmo que mentalmente, tudo o que se lê. Sua origem está no ensino tradicional, que cria no estudante um reflexo condicionado entre visualizar os símbolos gráficos e pronunciá-los. Perceba como você está lendo este texto. Você está apenas passando os olhos pelas palavras ou está sussurrando baixinho, quase de forma inaudível?

Se eu disser “não pronuncie, em hipótese alguma, a palavra ‘mafagafos'”, perceba que automaticamente coloquei você em uma armadilha, pois se você vocaliza enquanto lê, provavelmente sussurrou a palavra que não deveria ser dita.

Essa reflexão nos leva a entender que, dependendo de como processamos uma leitura, podemos inadvertidamente quebrar juramentos ou tabus, mesmo que estejamos apenas escrevendo ou lendo um texto didático. Imagine agora uma cultura onde a escrita não existisse e toda a compreensão do mundo estivesse apenas na memória, onde as pessoas se educassem umas às outras falando e exercitando a memorização. Essa era a realidade para toda a etnia yorùbá até 1570, quando começaram as negociações do império de Ọ̀yọ́ com França e Portugal.

Essas negociações e relações não foram realizadas em idioma yorùbá, pois exigiam intérpretes e pessoas versadas em duas línguas: a língua do contratante (português ou francês) e a língua do contratado (yorùbá), sendo a língua do contratante os únicos idiomas que podiam conter as atas das reuniões, já por estarem escritos. O Francês passou a ser a língua importante com o passar do tempo, as escolas passaram a alfabetizar em francês, mas até aquele momento não havia um método sistematizado para ensinar o yorùbá a estrangeiros, como existia para outras línguas.

Foi apenas na década de 1840 que o bispo anglicano nativo da África, o Samuel Àjàyí Crowther (c. 1809-1891) que sistematizou o idioma yorùbá em acentos para apontar as tonais do idioma, criando um método para ensiná-lo. Ele publicou o “Vocabulário da Língua Iorubá” em inglês (Vocabulary of the Yoruba Language). Isso permitiu que qualquer falante de inglês pudesse estudar as tonalidades do idioma e se comunicar em yorùbá, desde que se dedicasse a isso. Nas décadas seguintes, os yorùbás aprenderam a escrever seu próprio idioma, visto que, até então, eles apenas aprendiam a ler e escrever em inglês ou francês. Esse fenômeno contribuiu para que o inglês se tornasse a língua oficial da Nigéria, com o francês como segunda língua. Aqueles yorùbás que não frequentaram escolas e não aprenderam esse “novo idioma” continuaram a se comunicar exclusivamente em sua língua materna, incapazes de transcrevê-la. Para muitos, essa realidade ainda persiste.

Na tradição yorùbá, CHAMAMOS as divindades citando os nomes que lhes foram atribuídos, e através de orações, verbalizamos nossos pedidos. Um sacerdote chama, abençoa e amaldiçoa alguém falando. Não importa a altura da voz, essas palavras precisam sair da boca, pois falamos coisas para que elas aconteçam.

Não há qualquer menção a “anotar o nome de alguém em um papel”, pois a escrita apenas entrou na cultura quando os cultos já estavam formatados e eram predominantemente orais.

Isso nos leva a duas reflexões importantes:

  1. Se a magia yorùbá está enraizada no que sai da nossa boca, entendemos por que não podemos falar o nome de algumas divindades. Citar o nome é chamá-las, clamar pela atenção delas.
  2. Se nossa voz tem o poder de transformar a realidade, como estamos transformando nossas próprias vidas com o que dizemos?

Então, se você gravasse tudo o que fala durante um dia e depois analisasse, perceberia que sua vida está exatamente do jeito que você tem falado. Você tem se praguejado ou dado esperanças a si mesmo?

“Àṣẹ òrìṣà ẹnu mi”
O axé do orixá está na minha boca

Os segredos e dogmas dos cultos existem para proteger os praticantes das próprias coisas que eles não têm controle. A tradição oral yorùbá nos ensina a importância do poder da palavra falada e como ela pode moldar nossa realidade.

Portanto, fica o conselho: não FALE o nome das divindades que você não conhece, porque se elas o ouvirem e você não souber controlá-las ou elas não forem com a sua cara, você terá problemas. Além disso, pare de focar apenas em seus pensamentos. Pela ótica yorùbá, preste atenção no que sai da sua boca!

Que Ọ̀rúnmìlà e os irúnmọlẹ̀ te concedam sabedoria e abundantes bênçãos por toda a eternidade!

Até mais! 😊

Publicado por

Awo Fáfúnmólú Oyékàlẹ̀

Sou um paulistano apaixonado pelo Brasil e por seu desenvolvimento espiritual, religioso e cultural, que busca estudar esse desenvolvimento também de forma acadêmica. Sou sociólogo e iniciado em Ifá, Stregoneria e Caatimbó. Meu objetivo é praticar essas tradições e estudar como elas influenciaram o Brasil-mágico que conhecemos hoje.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *